Opinião
Tasso, o gaúcho guacho
Por Paulo Rosa
Piratini, terceiro distrito
Dona Francisca, sua mãe, embora amantíssima e amabilíssima, era seca de peito. Daí, óbvio, criou o potranco guacho. Jamais lhe passou pela cabeça usar leite em pó, ou qualquer assemelhado. Com o propósito, foi logo aquerenciando uma cabrita e uma égua, recém paridas, pra aceitarem o bagualito, entreverando-o com as crias. O método mostrou-se eficaz. Em apenas três tentativas o guri - que embora xucro para bobo não servia - já estava quase relinchando junto com a manada, digo, com a irmandade. Dona Chica, esperta que era, inspirou-se na história de Rômulo e Remo: se a loba Luperca pode, por que não poderia ela?
Vem, então, que o referido foi, em paralelo com a salutar aculturação humana, não só assimilando, mas desenvolvendo propriedades caprino-equinas em seu bem-viver. Assim, desse equilíbrio animal-humano, forjou-se raro e bem-acabado exemplar. Com o passar das luas, o guacho foi se tornando capaz de tanto fazer oportunas citações de Fernando Pessoa, quanto de perceber que ‘bom cabrito não berra’ ou de sentarle aquela patada, sempre que necessário.
Tasso era, pois, produto da fronteira, a rapaziada o sabia. O sotaque o denunciava. Os cacoetes, idem. Odiava plurais, amava coletivos. Entendia que os ‘s’ dos plurais eram desnecessárias excrescências, que somente enfraqueciam o fluir da solta prosa: ‘apenas ostentação’. Com o singular basta para entender, retorquia entredentes, caso o questionassem. Com as consoantes palatais carregava no sotaque de fronteira - ‘óbvio que da fronteira Brasil-Uruguai, onde mais?’, reagia, à miúde com enfado.
Y así se pasaban los días. Certa feita, madrugadita, o sol velho ainda por nascer, Tasso prendeu o fogo na lareira e, enquanto esquentava a água pro primeiro mate, a lenha estalando, foi recordando tempos ‘de primeiro’. Veio-lhe ao bestunto sua antiga petiça, uma colorada mala-cara, a Jardineira, nome dado por Dona Chica. Pois não é que o animal o salvou da morte? De guri, inquieto que nem ninho de marimbondo, o guacho se estrebuchou num perau, quase estropiando uma canela. Cheio das dores, envergonhado com a pisada em falso, Jardineira, como que antevendo o desastre, facilitou uma rédea na direção do bagual, que ali se agarrou que nem carrapato. A petiça, bastando aos poucos para trás, foi alçando o guri que, de a poquito, achegou-se à terra firme, saindo do ladeirão mortal. “Não fosse a petiça, estaria até hoje no fundo do perau”, exagerou para si mesmo. Todo gaúcho é hiperbólico, ponderou, uma forma de dizer que gaúcho guasca não mente, nem mete mal o cavalo.
Solito, madrugadão adentro, correu a ideia, na alma pura do xucro, de que ele apartava o que segue, qual boi gordo pro abate, mas no potreiro do Paul Valéry, esse francês-gaúcho-barbaridade: ‘quando chegamos à meta, acreditamos que o caminho foi o certo’, em Maus pensamentos & outros, pág.134. Esse índio é galo, pensou consigo e com seus aperos, entre mate e mate.
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